Seresteiros

Coluna semanal de Paloma Jorge Amado


Nunca vou esquecer de meu pai, sentado na varanda aberta, perguntando para minha mãe:

Zezinho, você que sabe tudo de música, contribui aqui com Vadinho que vai fazer uma seresta para Dona Flor.

Mamãe não se fez de rogada e imediatamente começou a cantar com a sua voz linda e afinada:

Noite alta, céu risonho

a quietude é quase um sonho,

o luar cai sobre a mata

qual uma chuva de prata

de raríssimo esplendor...

Papai quase chorou de emoção, parecia que a seresta feita por mamãe era para ele... E era!

Tirando dona Zélia, o maior seresteiro que já existiu, para mim, se chamou Silvio Caldas. Eu o ouvi cantar pela primeira vez quando era menina em Recife. A minha vida era um palco iluminado... ele cantava e era tão lindo.

Lembranças de velha? Deve ser. Pois eu assisti na televisão esta semana um rapaz que se intitula o Rei da Seresta, cantando uma música chamada Lamour ou L'Amour ou La Mour. As opções são dadas na Internet às várias mensões a uma mesma música que diz assim:

Se eu não voltar pra casa

Eu não posso viver....

(vão desculpando a falta de concordância verbal, mas ele é rei e tudo pode...)

Lamour, deixa eu sentir

você perto de mim

Lamour, que foi rever você

Divana, Matidana, Agamenon

Você entendeu? Parabéns! Eu não. A única conclusão a que cheguei foi que o cidadão é bissexual e ama duas mulheres, Divana e Matidana, e um homem, Agamenon.

E quem é esse Rei da Seresta? Chama-se Silfarley! Isso mesmo! Pessoas da minha idade conheceram o ator Cyll Farney, 41 filmes, 5 novelas, galã de sucesso com longa carreira. A avó do compositor, cantor e rei da seresta também conheceu e foi por causa do entusiasmo que a senhora tinha pelo ator (que ele dizia ter sido cantor), que escolheu o nome, mudando só um tiquinho...

Como eu soube de tudo isso? Assisto a televisão baiana, meu bom. Adoro. Exagero um pouco, porque o jornal é demorado e eu assisto todo. Não é feito para isso, pois começa às 6hs da matina, e quem viu desde o começo, quando chega às 7.30, e repetem a primeira matéria na íntegra, já saiu para trabalhar. Eu não, vejo outra vez, e de vez em quando, se a matéria é muito aterrorizante, passam uma terceira. E eu ali, sem desgrudar. Mas bem, já tinha visto a chamada nos intervelos da programação: O arroxa vai à praia com Silfarley. Achei o nome da criatura curiosíssimo, e mesmo não sendo fã de arroxa, vi a matéria as duas vezes que foi exibida no mesmo jornal. Foi quando ele explicou a origem do seu nome. Cantou o Lamour e outra sobre um garçom que ele para e pede uma cerveja gelada, e isso provoca imenso entusiasmo em quem escuta. Por que será? Só não explicaram o motivo do apelido de Rei da Seresta para quem canta arroxa. Será que acham que arroxa e seresta são o mesmo gênero musical? Deus crêa! (escrevi em baianês, sem i, vão desculpano -- sem d).

Pensando em tudo isso, fica paupável o passar do tempo. A gente vive num contínuo e as lembranças fazem parte da nossa atualidade. Me vejo ao mesmo tempo menina, jovem, mulher lutadora, A velha eu encaro olhando o espelho e me custa acreditar que sou mesmo eu. Mas nem tudo é esquecido, tanta coisa continua viva, mesmo para os mais jovenzinhos.

Há 2025 anos nascia um menino em Belém, ninguém esquece. Muito pelo contrário, se comemora com alegria, não importa que o capitalismo selvagem se aproveite da data para encher a burra de dinheiro (eita, outra expressão que Silfarley não entenderia). Importante é que veio para dizer com palavras simples e sábias que os seres humanos são iguais, merecedores de uma vida igualmente digna. Virou rapaz e homem honesto, nem chegou à idade em que legalmente se é idoso, 60 anos, morreu com 33, um menino ainda.

Desejo que neste Natal todos tenham muita paz, que o vivam com amor, ternura e gentileza, como deve ser a vida da gente.

Bom domingo a todos, ouvindo Silvio Caldas cantando sua composição Canção de Natal:

Que linda noite de Natal

Um suave manto envolve a terra

Nas ruas, igrejas e nos lares

Natal, Natal, Natal

Namorados sorriem alegremente

Um beijo é o melhor presente

Só eu não tenho a quem beijar

E dizer: Feliz Natal!

Sobre a autora

Paloma Jorge Amado é escritora, ilustradora e pesquisadora de gastronomia e literatura. Filha de Jorge Amado e Zélia Gattai, é membro do Conselho Diretor da Fundação Casa de Jorge Amado e dirige a Grapiúna, empresa que gerencia os direitos autorais do autor. Autora de diversos livros e curadora de exposições, tem trajetória marcada pela difusão da cultura baiana no Brasil e no exterior.

Foto: Cecília Amado

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