Retalhos de poesia
Coluna semanal de Paloma Jorge Amado
Perdi a conta das vezes que ouvi dizerem para meus pais, penso que por adulação, o velho e ridículo chavão: Atrás de um grande homem vem sempre uma grande mulher. Papai ficava irritado, coisa rara de acontecer com ele. A resposta não variava: "Zélia nunca andou atrás de mim, sempre esteve ao meu lado e nós dois -- dois e não um só -- de mãos dadas caminhamos para frente. O nosso para frente sempre foi à esquerda". Hoje, pensando nesse ensinamento, começaram a vir à minha cabeça vários poemas e eu resolvi fazer uns recortes e uni-los. Ficou assim:
Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
Num sol de (quase) dezembro, eu vou
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não
Caminante no hay camino
Se hace el camino al andar
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
Penso ouvir a pulsação atravessada
Do que foi e o que será noutra existência
É assim como se a rocha dilatada
Fosse uma concentração de tempos
Mas o tempo é como um rio
Que caminha para o mar
Passa, como passa o passarinho
Passa o vento e o desespero
Passa como passa a agonia
Passa a noite, passa o dia
Mesmo o dia derradeiro
...
Meu amor não tenhas mêdo
Me dê a mão e o coração, me dê
Quem vive, luta partindo
Para um tempo de alegria
Que a dor de nosso tempo
é o caminho
Para a manhã que em seus olhos se anuncia
Apesar de tanta sombra
Apesar de tanto medo.
Caminho na dor do tempo que passa, fazendo meu caminho para chegar na luz, que tantos olhos ao meu redor anunciam. Invado as sombras sem medo. Sei que a pedra no caminho é uma concentração desses tempos cheios de dores e promessas de luz. Passam os anos como agora, que mais um se vai, e eu sigo, despossuida das formalidades, sempre de mãos dadas, sabedora da irmandade e da igualdade entre os seres humanos. Quantos passos mais hei de dar, marcando o meu caminho de esperança e paz, sempre? (E o pra sempre, sempre acaba, Cássia cantava lindamente!). Como meus pais, ando e faço o meu caminho com meus dois pés, sempre à esquerda.
Meu amor, não tenhas medo!
Bom ano de 2026 a todos.
E meus agradecimentos a Caetano, Geraldo Vandré, Antonio Machado, Drummond, Chico Buarque, Edu Lobo, Cassia Eller e Renato Russo.
Meu beijo mais solidário e emocionado para Mãe Angela, Mãe Neli, Kátia Badaró e Licia Fábio, na saudade de nossa Mãe Carmen, que para sempre estará com seus filhos. Existem os para sempre, que são para sempre.
Sobre a autora
Paloma Jorge Amado é escritora, ilustradora e pesquisadora de gastronomia e literatura. Filha de Jorge Amado e Zélia Gattai, é membro do Conselho Diretor da Fundação Casa de Jorge Amado e dirige a Grapiúna, empresa que gerencia os direitos autorais do autor. Autora de diversos livros e curadora de exposições, tem trajetória marcada pela difusão da cultura baiana no Brasil e no exterior.
Foto: Cecília Amado

